sábado, 4 de março de 2017

O mestre e o escritor

Imagem: Jonathan Wolstenholme

Sentados frente a frente, dois homens esperam a condução. Parecem perdidos em seus pensamentos, quase imóveis, cada um com um livro na mão. Alguém distraído poderia pensar que são muito parecidos estes homens. Estatura mediana, cabelos esbranquiçados nas têmporas, mãos sem sinais de trabalho braçal. São homens de ideias, seria lícito dizer.

Estavam assim há tempo considerável, não se notaram, já que apenas os corpos partilhavam de proximidade, os pensamentos, ou as almas, se preferem, estavam longe, imersas nos conteúdos das páginas que miravam sem esforço.

Quase ao mesmo tempo, a posição cansou aos dois, foi preciso ajustar a postura, mudar um pouco a direção da cabeça. Instintivamente os olhos buscaram o livro um do outro, objeto comum de fascínio, e perceberam quão diferentes eram seus assuntos.

Foi o da esquerda quebrou o silêncio.

– Por muito tempo fui enamorado deste jogo, mas a pouca reciprocidade me afastou. Prazer, sou Baltazar.

– Como vai? Sou Estevão. Ah sim, o livro! Sempre o trago comigo, é para não perder o hábito de analisar posições de xadrez. Sou jogador, preciso estar sempre em forma.

– É um jogo demandante, bem lembro! Há tempos, porém, que enveredei pelo caminho das letras, outra paixão, tornei-me escritor. Mas, muitas vezes, percebo grande semelhança em nossos ofícios.

– Semelhança, como poderia ser? Há jogadores que escrevem livros sobre o jogo, mas… entre escrever e jogar uma partida de torneio... vejo tão pouco em comum. Escrever é um ato solitário, individual, no xadrez cada partida é composta a dois. Mesmo quando só um jogador é exaltado, como na famosa partida Imortal, é preciso haver um adversário.

– Meu caro, é aí mesmo que reside grande semelhança, cada partida é uma trama, uma história. Cada um vê a si próprio como o herói. Mas toda história precisa de um vilão, no xadrez o vilão é sempre o adversário!

– Bem, confesso que não havia pensado nisso. Mas ainda afirmo serem tão díspares nossas profissões. O enxadrista planeja suas jogadas tentando prever a ação do adversário, nada é determinístico, nada está numa mente só.

– Ah, quantas vezes são iniciadas obras sem que o autor saiba aonde suas palavras o levarão! No tempo de composição de um livro, de um conto, quantas influências um escritor pode ter: amigos, filhos, vizinhos... Como se vê, não há nada determinístico.

– Vejo que és astuto, Baltazar, mas não me convence. O enxadrista usa peças, são somente seis tipos, o tabuleiro contém um número fixo de casas. São muitas as partidas que se pode jogar. No vernáculo, porém, há tantos milhares de palavras, e não há limite ao papel que se deseje preencher com elas.

– Amigo, se me permite, as histórias são fruto da vivência dos seres humanos, e assim como há seis peças, os sábios falam que são seis as aflições humanas, são sete os pecados capitais e dez os mandamentos… Percebe? Poucos os elementos básicos povoam todas as histórias contadas, assim como são poucos os tipos de peças que compõem as mais belas combinações do xadrez.

– Já que falaste em combinações, aí está a maior diferença, pois, com frequência, sacrificamos peças pelo objetivo final, o xeque-mate. Como pode ter algo a ver com a literatura?

– Acontece o mesmo com as personagens, são como as peças, cada uma tem sua função na trama. Tantas vezes, é preciso matar o mocinho, separar um casal, levar um filho amado, tudo pelo desfecho ideal.

O enxadrista sentiu-se sem lance, tamanha a coerência do escritor, pois parecia haver um contexto, não somente semelhanças pontuais. Lembrou-se dum antigo diálogo citado num livro de xadrez, no qual um maestro de orquestra perguntava ao grande mestre de xadrez qual era sua profissão, e o jogador retrucava perguntando “e a sua, qual é?”.

– Estou convencido, Baltazar. Estou encurralado como um rei no canto do tabuleiro. Somos artistas em áreas que guardam notáveis semelhanças. E pensei, agora, em mais uma: a palavra escrita é como o peão que avança, não tem retorno!

Apertaram as mãos e, num impulso amistoso, trocaram seus livros, onde anotaram um endereço de contato, para uma partida amistosa ou um café.

O escritor partiu pensando que aquele diálogo merecia um conto. Já o enxadrista, jamais se livrou daquelas analogias e, ainda hoje, sempre que move um peão para abrir o jogo, baixinho diz para si “Era uma vez...”.


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