sábado, 29 de outubro de 2016

Pensamento acelerado é pensamento?

Mas, vocês sabem como analisar variantes?’ Eu perguntei aos meus ouvintes e, sem dar-lhes tempo de responder, eu continuei. ‘Vou mostrar-lhes como analisar variantes e se por acaso eu estiver errado, então me interrompam. Vamos supor que numa dada posição em sua partida, você precise escolher entre dois lances Td1 ou Cg5. Qual deles você deve jogar? Você senta confortavelmente eu sua cadeira e inicia a análise dizendo silenciosamente para si os lances possíveis: ‘Bem, eu poderia jogar Td1 e ele provavelmente jogará … Bb7, ou poderá tomar meu peão da coluna a, que agora estará desprotegido. O que depois? Esse nova posição me agrada?’. Você segue uma jogada além em sua análise e então faz uma cara de desagrado – o lance de torre não parece bom. Então, você passa ao lance de cavalo. ‘E se eu jogar Cg5? Ele pode expulsar o cavalo com … h6, eu jogo Ce4, ele captura o cavalo com o Bispo. Eu recapturo, e ele ataca minha dama com sua torre. Isso não parece muito bom… então o lance de cavalo não é tão bom. Vamos checar o lance de torre de novo. Se ele joga … Bb7 eu posso responder com f3, mas o que fazer se ele capturar meu peão de a? O que posso fazer em seguida? Não, o lance de torre não é bom, eu tenho que checar o lance de cavalo novamente. Então, Cg5 h6; Ce4 B×e4; D×e4 Td4. Não, não é bom! Eu não devo mover o cavalo. Tente o lance de torre mais uma vez. Td1 D×a2. Neste ponto, você olha para o relógio. ‘Meu Deus, já se passaram 30 minutos pensando se movo a torre ou o cavalo’. Se você continuar assim, acabará nos apuros de tempo. Subitamente você se depara com uma ideia feliz – por que mover a torre ou o cavalo? ‘Que tal Bb1?’. E, sem análise alguma, você move o bispo, assim mesmo, praticamente sem nenhuma consideração.

Alexander Kotov (1971) - Think Like a Grandmaster (tradução livre)

A passagem acima inicia um dos maiores clássicos da literatura de xadrez no mundo, Pense como um Grande Mestre (GM), escrito pelo GM soviético Alexander Kotov nos anos 1970. Nesse livro, ele apresentou ao enxadrista comum o conceito (e a técnica) de lance candidato e árvore de variantes. A audiência de Kotov, ao final da passagem acima, aplaudiu o mestre efusivamente, tamanha a exatidão com que ele descreveu o pensamento do jogador comum (inclusive o dele mesmo antes de alcançar a maestria).

Em sua descrição do pensamento do jogador comum durante uma partida, Kotov já antecipava o problema da falta de concentração e profundidade de raciocínio, algo que foi se acentuando com o tempo e que hoje acomete grande parte da população, enxadristas ou não. São diversas alterações que estão associadas à sobrecarga de informações, falta de controle da ansiedade, acúmulo de atividades. Algumas dessas alterações tem sido, inclusive, tratadas como distúrbios.

Um desses distúrbios é conhecido como Síndrome do Pensamento Acelerado (SPA), conforme nomeada pelo psiquiatra brasileiro Augusto Cury. Esta síndrome acomete principalmente pessoas submetidas a um trabalho intelectual intenso, que precisam de muita concentração, sujeitas à entrega de resultados sob pressão (justamente como numa partida ou torneio de xadrez). A SPA é um transtorno na organização e controle do pensamento causado pelo ritmo acelerado de vida que se tem atualmente, com exposição da mente a uma quantidade exagerada de estímulos e informações, de forma que a atenção fica “chaveando” entre esses estímulos sem conseguir o foco e a permanência necessária para resolver propriamente qualquer questão antes de passar à próxima.

Os efeitos da SPA sobre o organismo são diversos e nefastos: mente inquieta, ansiedade, falta de sono, sofrimento por antecipação (‘e se ele tomar meu peão da coluna a?’), reagir sem refletir propriamente (‘Por que não Bb1?’), cansaço físico intenso, queda na resiliência e redução da capacidade de se colocar na posição do outro (o que importantíssimo no xadrez!).

O enxadrista pode sofrer com alguns sintomas específicos. Em geral, ele não usa mais tabuleiro para treinar, logicamente, pois o smartphone, o tablet e o computador estão aí, à mão. Então, ele começa a passar uma partida, num aplicativo qualquer, para numa posição e tenta pensar numa variante (como na passagem do livro de Kotov), passados alguns momentos… ‘o que será que o computador diz desta posição?’ … lá se vai o estudo por conta própria. A longo prazo, ele perde não só o hábito de analisar, como também a confiança em seu julgamento.

Os próprios mestres andam sofrendo com isso. Tem a história recente de um GM que estudou com o computador uma longa variante de abertura para usar num torneio, memorizou tudo. Na partida, tanto ele como o adversário (outro GM) jogaram super-rápido, para deixar mais tempo para pensar na hora decisiva da partida. Resultado: o primeiro GM confundiu uma jogada, na ânsia de jogar a linha memorizada, acabou errando e ficando em posição perdida. Algo facilmente evitável para um jogador daquele nível se ele simplesmente parasse alguns instantes.
Mestres, mesmo campeões mundiais, podem ser presas dos efeitos nocivos do pensamento acelerado. (Fonte: Google, Fischer 1972)
Para reduzir os sintomas, os especialistas tem recomendado medidas bem simples, que podem ser adotadas por enxadristas e não enxadristas, e que consistem em voltarmos aos hábitos de alguns anos atrás: passar um bom tempo offline (vale ler livros em papel), praticar atividades lúdicas (partidas com peças, tabuleiro, relógio e adversários reais), exercitar o corpo (ir caminhando ou pedalando ao trabalho ou torneio), estar próximo de pessoas queridas (o que inclui encontrar os colegas enxadristas num clube) e meditar.

O tabuleiro real é ponto de encontro para amizades e conversas (acervo do autor - amigos enxadristas do RN)
Em especial, a própria prática do xadrez (com tabuleiro e peças reais) com amigos é uma excelente atividade lúdica para não enxadristas combaterem os sintomas da SPA.

Diz a antiga sabedoria popular que tudo demais é veneno, então, por que não reduzir um pouco o ritmo, o volume de tarefas e informações, os papos simultâneos em aplicativos de mensagem, parar de comer olhando para TV ou smartphone, ouvir um pouco o som do silêncio? Ali no fundo, por baixo de toda a confusão, você encontrará o seu melhor xadrez, ou futebol, ou karatê... em suma, encontrará a melhor versão de si mesmo.


Fontes de consulta:

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Maslow para Enxadristas (e para você)

Pirâmide de Necessidades de Maslow (wikipédia)

Em 1943 um psicólogo chamado Abraham Maslow criou uma teoria na qual elencava uma hierarquia de necessidades e desejos humanos com cinco níveis que, se alcançados, trariam realização pessoal e até mesmo felicidade. Este modelo ficou conhecido como Hierarquia (ou Pirâmide) das Necessidades de Maslow.

Nessa teoria, o primeiro nível é aquele composto de itens fundamentais à vida como alimentação, acesso à abrigo, sono etc. No nível seguinte, após o pleno acesso a todas as benesses do primeiro patamar, haveria a busca por coisas como propriedade, emprego e renda, estrutura familiar, princípios morais etc. Assim, todas as necessidades humanas são elencadas, até que no ápice da hierarquia vem a auto-realização, que seria quando o indivíduo obteve tudo o que está abaixo na pirâmide e, alem disso, sente-se no exercício pleno de todos os seus talentos, seus sonhos realizados.

A Pirâmide de Maslow pode ser adaptada para o caso do enxadrista de mais de uma maneira, uma delas é a seguinte:

Nível 1: movimenta as peças corretamente (inclusive roque e en passant); sabe quantas fases tem uma partida; aceita com alegria o epíteto de capivara; é permitido que participe dos torneios; só consegue acessar a parte mais externa de uma roda de análises.

Nível 2: não perde peças em armadilhas óbvias; entende um mínimo de estratégia (como o conceito de peões dobrados); tem afeição por uma ou duas aberturas de jogo; já vence pelo menos um outro mais capivara que ele próprio; é um rato de torneios de final de semana; é aceito no miolo de uma roda de análises.

Nível 3: já pensou em largar o xadrez pelo menos uma vez, mas passou, ama o jogo; domina a tática e tem boa noções gerais de temas estratégicos; tem um repertório de aberturas para brancas e pretas; sabe que precisa conhecer bem finais de partida; chia quando lhe chamam de capivara e já não é um adversário desejado para uma primeira rodada de torneio; é aceito no círculo interno da roda de análises, à borda da mesa, e até dá uns pitacos.

Neste momento, o xadrezista já começa a aspirar aos dois últimos níveis, “quer ser gente” como se diz. Com muita força de vontade, treinamento, sorte e prática, alguns chegam lá.

Nível 4: largou tudo pelo xadrez; tática e estratégia já são compreendidas como faces de uma mesma moeda; já não se limita a gostar de uma ou outra abertura, joga de tudo e muito bem, inclusive sem o tabuleiro; dorme com o livro de finais de peões do Maizelis; é admirado, já dizem que é um mestre; senta na mesa ao redor da qual se forma a roda de análises.

Nível 5: olha o tabuleiro e sabe, sem contar, quantas peças há sobre ele; escreve livros de tática e estratégia; vê o xadrez como uma extensão natural do pensamento; usa aberturas raras, até inferiores... e massacra; encontrou alguns erros no livro de finais do Dvoretsky; já lhe chamam grande mestre; os jogadores abrem-lhe o caminho até a mesa no centro da roda de análises, onde é convidado a sentar, ele dispensa, observa, dá sugestões benevolentes e certeiras; sabe que escolheu a variante certa para si no xadrez da vida.

Os paralelos são abundantes entre o jogo e a vida, também no que diz respeito à realização das necessidades, desejos e ideais. O sonho do enxadrista é o sonho de todo ser humano: ser um pouco feliz entre um lance e outro, se o adversário deixar!


domingo, 9 de outubro de 2016

A realidade, o xadrez e a matrix

- Isso não é real?
- O que é “real”? Como você define “real”? Se você está se referindo ao que você pode sentir, cheirar, provar e ver, então “real” não passa da interpretação de sinais elétricos pelo cérebro. Esse é o mundo que você conhece. O mundo como ele era no século XX. Ele agora existe apenas como uma simulação neurointerativa que nós chamamos MATRIX. Você vivia em um mundo de sonho, Neo.
(The Matrix, 1999. Diálogo entre Morpheus e Neo, tradução livre)
Vivemos todos no mesmo planeta, me parece razoável afirmar. Porém, este mundo real em que vivemos é percebido de forma diferente por cada um de nós. A realidade objetiva seria então como uma tela que contemplamos na parede de um museu, e voltamos para casa cada um com uma versão da obra, interpretada com base no que vimos e sentimos.

Mesmo em cenários mais simples que a vida, a realidade não consegue se impor de forma absoluta ao crivo dos sentidos, das crenças, do conhecimento acumulado, ou da falta dele. Um desses cenários pode ser o jogo de xadrez.

Façamos um experimento: tomemos os dois melhores jogadores de xadrez do mundo, coloquemos os dois perante um tabuleiro onde as peças já se encontram numa dada configuração, a que chamamos de posição. Neste caso, a posição faz o papel da realidade objetiva. O que eles diriam sobre ela? Eles concordariam?

Felizmente, podemos usar um caso real de uma partida do Campeonato Mundial de Xadrez de 1990, entre dois dos maiores enxadristas de todos os tempos, Garry Kasparov e Anatoly Karpov. Somos tão afortunados, que existe um documentário sobre esta disputa, no qual os dois grandes mestres explicam suas ideias em cada partida.

A vigésima partida daquele encontro foi decisiva para o desfecho do mundial. O ponto crucial é mostrado no diagrama abaixo, que mostra a posição após o vigésimo quinto lance das brancas:

Kasparov x Karpov (Lyon, 1990. P20): após 25. Cg4.
Vejamos o que eles disseram sobre a posição e sobre a jogada seguinte de Karpov (que tinha a vez e conduzia as peças pretas): 
  • Kasparov (aprox. 1:24:23): “Aqui o único lance é 25. ... Cd3 (...) Karpov jogou um lance natural 25. ... De8, que parece ser muito bom... prega meu cavalo, protege as casas brancas... (...), mas aqui a posição exigia o melhor lance (...) agora (após 25. ... De8) as brancas tem vantagem decisiva.” 
  • Karpov (aprox. 1:26:20): “Aqui, eu me sentia com posição muito boa, inclusive já considerava como eu poderia até mesmo vencer, mas eu deveria ter sido mais cuidadoso, como foi demonstrado na partida (...) eu deveria ter jogado 25. ... Cd3.
Assim, durante a partida, os mestres divergiram sobre a natureza da posição e seu resultado provável: Kasparov via a posição como equilibrada, porém demandava cuidados por parte das pretas; Karpov já se sentia muito confortável, pensando que estava prestes a vencer.

Somente a posteriori, no dia que foram entrevistados para o documentário, ambos concordaram sobre a natureza da posição e sobre qual deveria ter sido a jogada correta das pretas. Foi como se o artista aparecesse na galeria e explicasse o que ele havia pintado: tudo ficou claro. 

É impressionante como dois especialistas podem divergir tanto quanto a um aspecto objetivo de sua área de expertise. Este exemplo nos mostra que as divergências de percepção e julgamento nas situações mais complexas da vida são inevitáveis. 

Vale lembrar ainda, no caso dos mestres de xadrez, que a realidade da posição pode ainda ser diferente do veredito final fornecido por ambos (um provável empate após 25. … Cd3). Um dia os computadores resolverão o jogo, e só então saberemos a resposta. A vida, felizmente, é mais complexa que o xadrez, mesmo (e especialmente) para os computadores.
A MATRIX não pode te dizer quem você é. (The Matrix, 1999. De Trinity para Neo, tradução livre)
Para nós resta compreender o pouco que nos é dado a desvendar da realidade e saber conviver com (e em certos casos, sobreviver a) a versão dos outros que participam conosco deste grande jogo da vida.

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LancesQI

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