quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Uma lenda lendária

 Cartuns Alpino

Conhecer-se... talvez seja a mais difícil das tarefas!

Conta-se que, certa vez, Yo Ping, um jovem sedento por sabedoria, procurou Mestre Kon, que há muito havia-se retirado para as altas colinas do Oeste, para ali manter-se em serena meditação e contemplação das ações da natureza.

O jovem Yo Ping viajou por três dias, refugiando-se à noite sob as árvores, concentrando-se para afugentar maus pensamentos e conciliar o sono reparador.

Mestre Kon surpreendeu-se quando, ao final do terceiro dia de viagem, Yo Ping chegou ao seu acampamento simples, fez uma cortês reverência e pediu para ficar com ele por um tempo, compartilhando de suas lições.

O mestre não respondeu, tampouco fez nada que pudesse ser interpretado como uma negação. Assim, Yo Ping permaneceu ao lado dele por mais três dias.

Neste tempo, os dois, embora jamais juntos, desempenhavam as mesmas atividades corriqueiras e observavam-se mutuamente, um pela veneração, outro por simples curiosidade, ou talvez porque reconhecesse no jovem aquele que um dia havia sido.

Na manhã do quarto dia, Mestre Kon olhou profundamente nos olhos de Yo Ping e perguntou

– O que buscas aqui?

– Sei que és um mestre e anseio por aprender contigo a sabedoria.

O mestre já suspeitava das intenções do aprendiz e, durante os três dias, havia estudado cuidadosamente as atitudes do jovem, percebera sua boa vontade, mas também havia notado algo fundamental.

– Conheces a ti mesmo?

Ele respondeu rapidamente

– Sim, mestre, creio que sou quem melhor me conhece em todo o mundo.

O mestre já esperava aquela resposta.

– Então, sabes que em tuas meditações sentas-te sempre sobre o teu pé direito, que inicias teu sono voltado para leste e acordas voltado para o sul. Sabes que a brisa da tarde faz-te coçar a orelha esquerda?

Yo Ping não sabia do que o mestre falava. A princípio julgou ser algum tipo de teste, de intimidação. Ele não sabia se em todas as vezes em que meditava sentava-se sobre o mesmo pé, nem podia garantir que sempre dormia voltado para leste, nem de que coceira o mestre falava.

Desta vez foi Yo Ping quem tornou-se silencioso e, por outros três dias, meditou sobre as observações do mestre. Notou a verdade nas palavras do ancião e, por fim, voltou à sua presença.

– Não, mestre, eu não me conheço.

– Talvez, agora tu tenhas começado a adquirir este conhecimento – replicou o mestre. A sabedoria é como o final duma viagem que não chega ao fim, o último passo sempre revela que haverá um próximo. O início da viagem, entretanto, repousa no auto-conhecimento. Vai, inicia tua viagem rumo à tua própria descoberta. Só quando julgares que cumpriu esta etapa é que poder-te-ei ensinar algo de valor.

– E quando saberei que é hora de voltar?

– No momento que teu auto-conhecimento for completo, sentirás que deves retornar até mim.

Yo Ping partiu naquela mesma manhã. Em seis dias havia conversado com o mestre apenas durante poucos minutos, mas sentia que aprendera o que necessitava naquele momento.

Mestre Kon, sem alteração perceptível no rosto, sorriu por dentro ao presenciar mais uma vez alguém iniciando a busca sincera por seu próprio conhecimento. Contemplou a partida do discípulo sabendo que havia-lhe ensinado tudo o que havia por se ensinar. Por fim, voltou às suas meditações.

Yo Ping refez o caminho de volta observando atentamente tudo o que fazia e o que pensava, como reagia às diversas situações. Quando avistou a vila natal, algo dentro de si o fez pensar que seria necessário algum afastamento, um tempo para aprender sozinho, sem interrupções ou distrações, quem ele realmente era.

Partiu no mesmo dia.

Procurou por terras remotas, onde pudesse viver com o básico oferecido pela natureza. Fixou acampamento numa região de planície, oposta à região de colinas onde habitava Mestre Kon.

Dia após dia, esmerou-se na tarefa que aceitara empreender. Entretanto, sempre achava que era necessário mais tempo. Passaram-se meses e anos, e Yo Ping jamais se sentia pronto para retornar à presença do seu mestre.

Certo dia, vinte e três anos após ter-se voluntariamente exilado na região dos vales, Yo Ping surpreendeu-se ao ser reverenciado por um jovem de aspecto compenetrado.

– Sei que és um mestre, e gostaria de contigo aprender o caminho da sabedoria.

Yo Ping, ou Mestre Ping, percebeu, então, toda a verdade. Sabia que jamais voltaria a ver Mestre Kon, mas, ao mesmo tempo, sabia que sua busca era genuína e teria de continuar.

Por três dias observou o jovem, cujo nome perdeu-se na poeira dos tempos, e na manhã do quarto dia, lançando um olhar profundamente piedoso sobre ele, Yo Ping perguntou:

– Conheces a ti mesmo?

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Memórias de um enxadrista

Há treze anos eu jogava minha primeira partida num torneio de xadrez. Tinha as peças brancas. Confiante, aventurei-me com "1. e4", e fui surpreendido pela, então inédita, defesa Siciliana, "1. ... c5". Foi minha primeira derrota em torneios.
Desde então minha devoção ao jogo aumentou, voltei com afinco às páginas do Xadrez Básico, comecei a ter aulas, disputei outros torneios. Foi um ano dedicado a melhorar minha técnica na intricada arte das 64 casas. Ao final deste ano eu terminava o Campeonato Estadual Absoluto (de todas as categorias) num honroso (para mim) oitavo lugar, melhor colocação dentre os jogadores de minha idade.
Aquele foi um tempo de grandes descobertas sobre o tabuleiro: um pouco de aberturas, um pouco de meio-jogo, um pouco de finais de partida. Muitas vezes, nas metafóricas combinações do nobre jogo, incipientes lições de vida eram reveladas.
Passei toda a adolescência e início da vida adulta pensando quase que diariamente em alguma situação enxadrística. O xadrez fez parte de minha vida em ocasiões importantes: entrada no segundo grau e na universidade, vivência no exterior (onde também disputei torneios), primeira namorada, primeiro emprego, primeiro carro.
Mas, ironicamente, o próprio desenrolar da minha vida foi-me afastando do enxadrismo, as metáforas com o jogo foram rareando, até que, com tristeza, sinto-me hoje quase um estranho ao universo que ronda o xadrez. Se, por acaso, visitar uma sala de torneio qualquer em minha própria cidade, é bem provável que eu não conheça boa parte dos jogadores.
Vêm à mente, muitas vezes, imagens variadas: dos bons amigos que fiz nos torneios, das muitas derrotas, das vitórias importantes que me impulsionaram a continuar. Refaço mentalmente as variantes que tomei e que, pouco a pouco, levaram minha vida para cada vez mais longe dos tabuleiros.
Felizmente, quando parece que perdi os laços com o jogo dos reis, uma bela partida num livro ou na internet reaviva a velha chama, e sou novamente como o garoto que há treze anos descobria, com o rei inclinado, a eficácia da temida defesa Siciliana.

LancesQI

O blog foi mudado para: www.LancesQI.com.br