sábado, 10 de dezembro de 2016

Falsos cognatos

Rainha 'h6' na cabeça!
No estudo de línguas estrangeiras, precisamos estar atentos para não cair nas armadilhas dos falsos cognatos, palavras de grafia parecida, às vezes de mesma origem, mas na língua materna tem um significado e na língua estrangeira tem outro muito diferente.

Há muitos exemplos famosos de falsos cognatos entre os idiomas português e espanhol, diversos comerciais de TV exploram com bom humor possíveis confusões.

No xadrez pode acontecer um fenômeno parecido, quando alguém confunde padrões táticos. Por exemplo, há posições com uma configuração muito semelhante de peças chave, porém com pequenos detalhes que fazem toda a diferença. Não raramente, o jogador é enganado pela semelhança, uma vez que os circuitos neurais para reconhecimento de padrões são muito mais rápidos que os circuitos de análise convencional de jogadas e, nem bem começa a pensar, já está com a mão na peça, movendo no puro instinto, pela semelhança com um padrão tático conhecido.

Aconteceu esses dias com Isaias, numa partida rápida. Ele havia acompanhado o desfecho do match pelo campeonato mundial Carlsern × Karjakin e estava maravilhado com o lance final do campeão:

Carlsen x Karjakin WCC2016 m16. Posição após 49. ... Rh7.

Carlsen jogou 50. Dh6!, com xeque mate na próxima jogada, não importa a resposta de Karjakin, que abandonou.

Terminar um campeonato mundial com sacrifício de Dama foi um incentivo e tanto para os aficionados do mundo inteiro, inclusive para Isaias que estava há um tempo parado e resolveu jogar umas partidas rápidas no clube.

Ele estava com fome de xadrez, lembrando os velhos reflexos, sobretudo inspirado pelos lances do campeonato mundial. Numa das partidas, apareceu a posição abaixo, Isaias, com as peças brancas, tinha a vez de jogar, pode dar mate em duas jogadas!

Brancas jogam e dão mate em 2. Se pretas jogam, dão mate em 2.
Isaias arregalou os olhos e, num rápido disparo neural, percebeu semelhança absoluta com a posição final do campeonato do mundo (Torre na oitava, peão branco em h5, Rei preto indefeso em h7, Dama mirando h6), e jogou sem nem sentir: 1. D×h6?? ao qual o adversário, feliz, respondeu com 1. … g×h6. Isaias, contrariado, ainda tentou 2. Cg6, mas foi surpreendido com o fatal contra-ataque preto 2. … Th3+! 3. B×h3 Dh2#.

A audiência começou logo a brincadeira, dizendo que Dh6 não é pra qualquer um! Mas pior foi quando ele descobriu que tinha mate simplesmente com 1. Dg6+! f×g6 2. h×g6#. Fora enganado pelo falso cognato tático!

No caminho de casa, Isaias pensou: “Agora eu sei como Karjakin se sentiu quando não viu 20. … C×f2 na 10ª partida...”. E acabou por se consolar: “Até grandes mestres têm seu dia de capivara"!


domingo, 4 de dezembro de 2016

O jogador que só queria perder


- Vocês viram, David foi campeão mundial!?
- Que coisa, não é!? E pensar que todos aqui ganhamos dele!

Alguns anos antes...

Naquele tempo, as crianças ainda se juntavam para brincar, havia as brincadeiras de temporada. Primeiro eram os jogos de correr e pegar, depois de bola, até que alguém ganhava um jogo novo de tabuleiro, como WAR ou Banco Imobiliário. A meninada, principalmente os meninos, ficava numa rivalidade acirrada, verdadeiras rixas, que, às vezes, chegava perto da disputa física.

Foi o Luizinho quem trouxe a grande novidade daquele ano, presente de aniversário: uma caixa de madeira toda cheia de quadros claros e escuros, dentro dela uma peças miúdas de madeira, também claras e escuras. Formaram uma roda para ver aquilo. Como é esse jogo? Essa peça anda para trás? Como que come? Por sorte havia no fundo da caixa uma papeleta com as regras.

O que os meninos não sabiam é que pela primeira vez tinham contato com um jogo perigoso, que fazia cada um encarar o que trazia dentro de si, seus medos, suas vontades, seus anseios, sua visão de mundo (e naquela tenra idade lá se tem noção que temos uma visão de mundo!?). Eles partiram para os confrontos, sempre dois jogando e uma dezena assistindo, curiosos e ansiosos pela vez de tomarem o canto de quem perdeu. Cada um jogava com muita vontade de ganhar, pois quem perdia ia para o final da fila e esperava a tarde inteira até ter outra chance.

Na escola, alguns descobriram que havia livros sobre aquele jogo, com táticas, jogadas estudadas e repetidas muitas vezes, com desfecho já conhecido. Era como abrir um baú cheio de ouro, e logo perceberam que conhecimento era poder e precisava ser protegido.

Aquilo trouxe uma grande discrepância de desempenho, e aconteceu a natural separação entre os que viam algum sentido em empurrar aquelas peças e os demais que já perdiam o interesse, pois não suportavam as derrotas em série, nem tinham vontade de aprender mais; era só um jogo, não é?

Permaneceu, então, uma pequena confraria, com alguns meninos de nível equilibrado, exceto David, o que mais perdia. Apesar de demonstrar criatividade e bom raciocínio, ele não era páreo para os colegas que já tinham lido os manuais de aberturas, sabiam notação e resolviam problemas do tipo ‘Brancas jogam e ganham’. Perder tanto não era um desmérito em si, de certo modo até demonstrava como o jogo era valioso para ele.

Um dia, Miguel, o maioral daquele grupo, deu um xeque-mate elegante em David, um daqueles que aprendera nos manuais. Não teria sido nada demais, se não fosse o comentário do vencedor:

- Desista deste jogo, David, você não serve nem para perder de todos.

Os outros riram, e David saiu cabisbaixo. Naquele momento, ele percebeu como o jogo era capaz de dilacerar o ego de alguém.

David passou os meses seguintes afastado do tabuleiro, mas quando menos esperava estava pensando no movimento das peças, nas armadilhas em que tinha caído, mas que agora percebia como deveria fazer para escapar. Quando voltava a si, repelia fortemente aquelas ideias, o jogo não era para ele, a prática havia demonstrado.

‘Você não serve nem para perder para todos’. Essa frase martelava David todo dia. Que tolice! Claro que, se quisesse, poderia sentar e jogar com qualquer pessoa e perder, era apenas questão de iniciar a partida e fazer jogadas ruins. Mas aquilo ficou tão marcado para ele que o assunto foi ficando sério, e ele foi descobrindo algumas dificuldades práticas para refutar a “profecia” do amigo. Para perder de todos, era preciso primeiro conseguir jogar com todos.

David, então, já havia descoberto os livros, tinha lido alguns. Mas ficou mesmo maravilhado quando, ao passar numa banca de jornais, viu ali uma revista estrangeira que trazia na capa dois homens de terno, olhar sério, jogando uma partida. Cada um tinha a bandeira de seu país ao seu lado, além de uma caixa de madeira onde parecia haver dois mostradores de despertador. Pediu ao dono da banca para olhar melhor, passou as páginas e viu muitas partidas com explicações, fotos de jogadores famosos, campeões do mundo. Afinal, aquilo não era só uma brincadeira de meninos.

Ficou ainda mais pensativo, como conseguiria provar que seu antigo carrasco estava errado? Ele poderia sim servir ao menos para perder de todo mundo! Mas como ele faria para sentar no tabuleiro com o campeão mundial?

Um estalo: precisaria aprender a jogar muito bem para poder enfrentar, e perder para, os grandes jogadores do mundo. Desta forma, conseguiria provar que seu amigo era um grande idiota.

Assim, começou a vida de David como jogador profissional. Ainda menino passou a fazer o mínimo na escola e a devotar seu tempo quase inteiramente ao jogo. Tomava parte nos torneios, nos quais, apesar da notória evolução técnica e conhecimento, sempre dava um jeito de perder o primeiro confronto contra qualquer que fosse o adversário. Perdia rápido, muitas vezes vergonhosamente para alguém daquele nível.

Por causa desta singular estratégia, demorou um pouco mais para acumular os títulos: campeão escolar, campeão estadual juvenil, campeão nacional juvenil, campeão nacional adulto…

David tinha um estilo criativo, por vezes excêntrico, que usava como “explicação” para suas derrotas inciais contra um novo adversário. No fundo, nunca deixara de ser aquele menino curioso e maravilhado ante as possibilidades do jogo, ainda profundamente magoado com a ofensa passada. Fizera aquilo tudo para provar que servia para alguma coisa, mas, em sua cabeça, ainda não conseguira.

O campeão mundial, Mikhail (coincidentemente Miguel em sua língua), não participava de torneios comuns, apenas disputas do título. Aguardava que os melhores do mundo se digladiassem pelo direito de disputar com ele a distinção de ser o melhor do planeta. Mas ele observava com interesse a ascensão daquele estranho jogador que despontava no cenário mundial. A forma que jogava não lhe parecia digna, era por demais instável, jogadas ridículas em uma partida para depois ser brilhante nas outras… aquilo não fazia o menor sentido. Começou a desejar que ele fosse seu desafiante, pois queria ensinar-lhe uma lição, para que jamais sentasse novamente perante um tabuleiro em sua vida!

Não se sabe se a “torcida” do campeão teve efeito, mas a teimosia de David fez com que ele superasse os demais candidatos em duríssimos torneios, até que somente ele restou. Apenas ele, dentre todos os jogadores do Mundo, poderia desafiar o campeão mundial.

Os jornais começaram a noticiar aquele confronto tão inusitado, Mikhail era claro favorito, afinal reinava por muitos anos e se poupava somente para aquele momento. O que ninguém sabia era que David estava a uma partida de realizar o que tanto sonhava.

Seriam vinte e quatro partidas, o primeiro a vencer seis delas seria o campeão, empates não contavam. Em caso de mesma pontuação ao final do confronto, o título permanecia com Mikhail. As regras pouco importavam para David, para ele bastava uma partida. Ele não fez tudo aquilo para ser campeão, muito pelo contrário. Estar ali naquela disputa era apenas uma estranha condição para seu real objetivo.

Chegou o grande dia, os jogadores se sentaram frente a frente, apertaram as mãos, Mikhail fitou o adversário com profundo desprezo, não era digno de estar ali a sua frente, mas, já que estava, deveria sentir a força de seu jogo.

David faria a primeira jogada e estava calmo, não ligou para aquele olhar, pensava em terminar aquilo rápido. Começou a partida com as duas piores jogadas possíveis de se fazer uma depois da outra, xeque-mate em somente duas jogadas do adversário. Mikhail, atônito, sequer sorriu pela vitória. Na verdade, ficou irritadíssimo ao perceber o semblante de dever cumprido que o derrotado apresentava.

David já não pensava no jogo, era uma página virada, estava assinando a súmula e planejava em instantes declarar perante todos os presentes, inclusive ao árbitro da competição, que renunciaria ao duelo. Não percebeu que esse aparente desprezo aumentou a ira do campeão que se levantou, foi até perto dele e falou próximo ao seu ouvido:

- Você é uma vergonha para este jogo e para si mesmo, só serve para isto, perder!

Mikhail não sabia, mas acabava de fazer a pior jogada de sua vida.


LancesQI

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