sábado, 19 de janeiro de 2019

Encontro com o decano do xadrez do Ceará

Coronel Carlos Alberto Ferreira, 97 anos de idade, decano do xadrez cearense!
Não sei se acontece com todos, mas quando eu leio os livros de xadrez dos grandes mestres do passado, parece que eles estão ao meu lado, contando suas histórias vividas numa época áurea do xadrez. Lamento que, de fato, eu não os tenha conhecido; nomes como Bronstein, Najdorf, Kotov, Averbakh… para falar somente daqueles cujos livros eu gosto mais.

Há poucos ainda no mundo que foram contemporâneos desses homens, que leram suas palavras quando a tinta ainda estava fresca no papel, que conheceram alguns deles pessoalmente. Há muito poucos no mundo, mas quantas dessas testemunhas oculares estão próximas de nós?

Será que quietos em sua casa, lendo e jogando xadrez, não existem veneráveis senhores ou senhoras que compartilharam este mundo com grandes jogadores, não necessariamente no mesmo espaço físico, mas ainda assim próximos dos eventos que hoje são somente histórias em livros.

Tive a honra de visitar pela segunda vez uma pessoa assim!

O coronel Carlos Ferreira (apenas Cel Ferreira nos tempos da ativa) é, com certeza, o decano do xadrez cearense (talvez até do Brasil), ainda que muitos dos enxadristas atuais do estado não o conheçam! Ele é uma testemunha das glórias do xadrez desse estado de enorme tradição no jogo (algo que hoje não se fala e divulga da maneira que deveria ser divulgado). Aos 97 anos, com uma lucidez e agilidade mental que demonstram o bem que faz o xadrez! Ele continua professando aos quatro cantos seu amor ao jogo, que pratica desde muito tenra idade!

Nosso decano demonstra grande combatividade no tabuleiro! Cheguei para uma conversa, mas fui desafiado para duas partidas!

Posição final de uma das partidas (Ferreira x Frota, 1/2-1/2)
O Cel Ferreira foi aluno da Escola Preparatória de Fortaleza (que funcionou entre 1942 e 1961 no prédio do atual CMF em Fortaleza-CE), oficial de carreira do Exército Brasileiro, vice-presidente da CBX, organizador do V Zonal Sulamericano de Xadrez (realizado em Fortaleza no ano de 1963), diretor do DETRAN-CE na década de 1960, além de ter atuado na indústria de pesca do Ceará nos anos 1970 e no SENAI nos anos 1980. No xadrez, continua forte jogador até hoje (como comprovei).


Além das partidas, ouvi histórias sobre o mestre Ronald Câmara (cearense, mestre nacional e bi-campeão brasileiro de xadrez) e sobre o também coronel Francisco Alves dos Santos, ou simplesmente Chico Alves (cearense, vice-campeão brasileiro de 1961 e membro da equipe brasileira na Olimpíada de Xadrez de 1972, realizada em Skopje, Alemanha). Ouvi sobre seu contato com nomes importantes como os grandes mestres Eliskases e Mecking.

Na memória do Cel Ferreira, está firme um tempo em que os segredos do xadrez estavam quase inacessíveis, sobretudo por trás da Cortina de Ferro. Contou que certa vez afastou-se do Ceará para residir em Recife, em virtude de sua posição como oficial das Forças Armadas, deixando alguns colegas de mesma força enxadrística que ele. Só que nesse intervalo de alguns anos, chegaram à Fortaleza alguns exemplares da famosa revista soviética de xadrez 64 que foram traduzidos e minuciosamente estudados pelos colegas do coronel. Quando ele voltou, uma surpresa: seus antigos rivais de mesma força eram agora quase invencíveis!

Perguntei: “Coronel, quem é o número 1 de todos os tempos?”. Ele falou sem titubear: “Fischer”! “E quanto a Kasparov?”. “Este fica em segundo”. Mas não pensem que ele ficou preso ao passado, regularmente acompanha partidas dos garotos de hoje, Carlsen e companhia.

O tempo foi curto para ouvir as histórias e jogar as partidas que ambos desejávamos, mas outras visitas virão!

Aproveitando o ensejo, ofertei ao Cel Ferreira um exemplar (único impresso) do meu ebook Xadrez Fascinante, não para concorrer com os clássicos de sua seleta biblioteca de xadrez, mas como singela contribuição de um conterrâneo que também ama esse jogo.

Já deixei a promessa de retornar, jogar mais um pouco, ouvir outras histórias e, quem sabe, poder ofertar o segundo volume do ‘Xadrez Fascinante’, ainda em elaboração.

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quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Ensaio sobre a cegueira... enxadrística

O xadrez é um jogo de informação perfeita, o que significa que tudo o que os jogadores precisam para tomar suas decisões está diante de seus olhos (ao contrário de outros jogos, como o Poker). Isso não significa que seja um jogo no qual as pessoas tomem sempre as melhores decisões, pois, a rigor, ninguém é capaz de “enxergar” todos os bilhões de possibilidades de posições sobre o tabuleiro. Na verdade, todo o perdedor de qualquer partida falhou em ver tudo o que precisava, senão conseguiria pelo menos empatar.

Ultimamente, com a chegada do AlphaZero, a definição de cegueira enxadrística precisa ser atualizada, pois a máquina "vê" tanta coisa que até os melhores humanos podem ser considerados cegos.

Por exemplo, no recente match Ca x Ca (Carlsen x Caruana), a sexta partida acabou num final muito interessante no qual o desafiante (com peças pretas) tinha bispo, cavalo e peão contra bispo e peão do campeão, mas que acabou em empate. Num dado momento, o computador, profundo e frio, viu xeque-mate para as pretas em 30 jogadas! Nesse nível, todos estavam cegos, até os dois jogadores mesmo depois de ver a jogada da máquina não percebiam o desfecho fatal.

Mas a cegueira que mais nos impressiona é a cegueira ao óbvio, coisa que até o mais neófito dos enxadristas seria capaz de ver.

Em 1953, jogava-se o famoso Torneio de Candidatos de Zürich, que deve sua fama aos excelentes livros escritos sobre ele e às polêmicas envolvendo a política soviética e a competição enxadrística. Na 19ª rodada do evento (que teve um total de 30!) enfrentavam-se o húngaro Szabo (que estava entre os últimos colocados) e o norte-americano Reshevsky (que tinha boas chances de vencer o certame).

Szabo tinha as peças brancas e jogou um xadrez bem dinâmico e, ao ponderar seu 21° lance, mirava a seguinte posição:


Szabo, L. × Reshevsky. S (Zürich, 1953), posição após 20.… B×f6

A maioria dos jogadores que costumam praticar e estudar xadrez perceberá que há acima uma situação de xeque-mate em 2 jogadas para as brancas, começando com 21.D×g6! Bg7 22.D×g7# ou 21.… Rh8 22.B×f6#. Szabo, que tinha muito tempo disponível em seu relógio para pensar, jogou rapidamente 21.B×f6?? arruinando a vitória imediata.

Vejamos o que os grandes cronistas (e participantes) do torneio falaram sobre este erro:

“Seguramente contagiado pelo angustiante apuro de tempo de seu adversário, o grande mestre húngaro retoma a peça, quando tinha mais tempo que suficiente para ver o simples mate em duas jogadas” (Najdorf)

“Um caso único em muitos anos de torneios: nenhum dos grandes mestres vê 21.D×g6! Bg7 22.D×g7#” (Bronstein)

A audiência, que seguia a partida em tabuleiro mural, reagiu com tamanha surpresa que seus ruídos chegaram aos ouvidos de Szabo que logo percebeu a oportunidade perdida. Mais adiante, voltou a errar numa posição ainda vantajosa, e acabou por propor empate mesmo em posição ainda ligeiramente melhor para ele. Segundo Najdorf, naquela altura para Szabo “era mais difícil solucionar os problemas de seus nervos que os problemas do tabuleiro”.

Afetado pelo erro, Szabo só voltou a vencer alguma partida naquele evento após 9 rodadas!

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