domingo, 23 de julho de 2017

O xadrez e a Vida (ou serão a mesma coisa?)*

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É comum escutarmos diversas pessoas expressando as mais desfavoráveis ideias com relação ao jogo de xadrez e aos seus aficionados. Isso é porque poucos compreendem que há muito da Vida no xadrez e muito mais do xadrez na Vida! No fundo, somos todos jogadores de xadrez, muito mais do que outra coisa qualquer que julguemos ser.

Para começar, a Vida é o Grande Tabuleiro onde jogamos nossa única e decisiva Partida! Isso mesmo, viver não é outra coisa senão jogar uma partida de xadrez... O difícil é que jogamos esta Partida com as peças pretas, já que não somos nós quem a iniciamos. Daí a extrema dificuldade que encontramos de vencer! Outra dificuldade: devemos aprender as regras durante o jogo, não podemos treinar antes, estudar as melhores jogadas com antecedência... Nada disso. Quando nos damos conta, o primeiro movimento já está lá, jogado no Grande Tabuleiro há algum tempo!

Mas, e as peças nesse xadrez da Vida, quais são?

Começarei pelo Rei. É nosso ego, nosso individualismo, nossa porção íntima e inviolável, que precisamos a todo custo proteger nos primeiros momentos da partida, mas que precisa agir para assegurar a vitória no final. O Rei pode mover-se em todas as direções, assim como o ego age em todas as facetas da Vida, mas ele é lento, move-se apenas uma casa por vez. Se resolve entrar em ação sabe que ficará exposto por algum tempo. Portanto, suas aparições precisam ser bem calculadas e precisas.

Agora vem a Rainha, ou Dama, como realmente a chamam os enxadristas. O que seria a Dama? Esta eu deixo para o final, convém explicar primeiro as outras peças. Tal como faço ao ensinar xadrez para alguém que está aprendendo as primeiras lições. Que tal passarmos aos Peões?

Os Peões são as peças mais numerosas, tanto que podemos entregar alguns deles no princípio para tentar conseguir vantagem. Se são usados sabiamente, e se não se é descuidado com sua disposição no tabuleiro, caminha-se com passos certos no rumo da vitória. Os Peões na Vida são nossos dias, meses e anos, tão numerosos, mas que, na verdade, nunca nos são suficientes. Cabe a cada um usar seus Peões de forma mais sábia, pode-se mesmo sacrificar alguns para deixar as outras peças em melhor posição, para obstruir a ação opressora das peças inimigas. E assim fazemos: sacrificamos nossa juventude muitas vezes em laboriosos estudos para garantir um bom futuro, ou usamos vários dias jogando futebol, ou bebendo em bares, ou planejando coisas que nunca faremos, porque sempre falta tempo. Um Peão que avançamos jamais volta atrás, seu movimento é sempre para a frente, como o do tempo. O tempo, portanto, são os Peões da Vida. Se os sacrificamos devemos saber que eles não voltam mais, devemos conseguir algo em troca, ou apenas os teremos perdido. Não esqueçamos que os Peões, ao chegar no fim de sua caminhada podem ser "coroados"! Isto é, são promovidos a peças mais poderosas, seja Dama, Torre, Bispo ou Cavalo. O tempo, quando termina, e se o usamos bem, também não nos dá frutos valiosos? Um célebre mestre do xadrez disse: "Os Peões são a alma do xadrez". Acho que agora ficou ainda mais evidente minha comparação!

O Bispo e o Cavalo, duas peças de naturezas diferentes, mas de valor relativo aproximado no xadrez. Há vezes que é melhor ter um Bispo, noutras é melhor um Cavalo. A discussão de quem é melhor, Bispo ou Cavalo, povoa vários artigos e livros de xadrez, tem sido motivo até de brigas em rodas de partidas rápidas. Mas, na Vida, o que podemos comparar ao Bispo ou ao Cavalo? Pensei bastante no problema, e penso que a inteligência é o Bispo no xadrez da Vida, enquanto o Cavalo é a esperteza! Estas duas características humanas são de valor aproximado em variadas situações, mas de natureza totalmente diferentes! A inteligência trilha caminhos contíguos nas diagonais da Vida. O Bispo sempre avança em diagonal, ou seja, em duas direções, a mesma desenvoltura da inteligência, que sempre nos faz avançar em mais de um aspecto da Vida. Porém, como a inteligência sempre segue os mesmos padrões em cada indivíduo, uma vez que conhecemos este padrão, fica mais fácil prever seus próximos passos. Assim é o Bispo, que sempre age numa das diagonais em que já estava previamente.

A esperteza, como o Cavalo, não segue um padrão linear. Esta peça tem um movimento limitado, em forma de "L", porém pode causar várias surpresas! A esperteza consegue ser o fator inesperado em diversas situações. Em ocasiões difíceis, travadas, nas quais não há muito que fazer, dão-se melhor os que a utilizam bem! A esperteza tem o poder de manobra de um Cavalo! O Cavalo sempre anda numa casa de cor diferente a cada movimento, se está numa casa preta ameaça uma casa branca, e vice-versa. Assim é a esperteza, que sempre garante uma coisa já de olho em outra diferente! O Cavalo é a única peça que pode saltar outras, a esperteza, igualmente, pode saltar outras características, como a inteligência alheia ou própria, para alcançar seus objetivos. Ainda outra analogia: no início da partida, os Bispos já estão agindo em várias casas do tabuleiro mesmo antes de serem movidos, já os Cavalos têm ação muito restrita no início e convém sempre movê-los antes dos Bispos ao iniciarmos as partidas. A esperteza tem alcance menor que a inteligência, e, para tirarmos proveito dela, precisamos usá-la ativamente desde o começo!

A Torre, ágil peça que age nas horizontais e verticais do tabuleiro, sempre forte e perigosa em colunas ou linhas abertas. Iniciam a partida nos cantos do tabuleiro, demora para colocá-las logo em jogo, mas, quando  entram em ação, são peças primordiais em qualquer estratégia. As Torres são nossas experiências adquiridas, nossa sabedoria, nosso conhecimento. Não podemos usar a experiência logo no início da Partida, porque ainda não a temos; precisamos fazer algumas jogadas antes na Vida para nos tornarmos aptos a usá-la. No roque, o Rei e a Torre movem-se juntos, o único movimento possível do xadrez no qual duas peças movem-se ao mesmo tempo. É um pacto entre essas duas peças! O Rei, o ego, se protege ao mostrar seu poderio de habilidades adquiridas, suas experiências, deixando a Torre livre para agir.

Agora sim, falta a Dama. Esta peça mais poderosa e arrasadora do jogo de xadrez! Perdê-la quase sempre significa perder a partida também. Ela tem longo alcance, seu movimento, que abrange todas as direções possíveis, é o casamento dos movimentos de Torre e Bispo, mas ela quase sempre vale mais que a soma destas duas peças. A Dama precisa ser ativa, para mostrar todo seu poder, precisa estar bem colocada, precisa de espaço aberto... Acho exato definir a emoção como a Dama no xadrez da Vida!

A emoção é forte, move barreiras, traz a realização quando alcança todas as suas potencialidades. Quando perdemos a emoção, quase sempre morremos de antemão! Sem sentimentos, sem paixão, sem sonhos, não há como vencer na Vida! A emoção é ágil e eficaz como o casamento de inteligência e conhecimento e, muitas vezes, consegue fazer ainda mais que essas duas coisas juntas. A emoção ainda forma o casal perfeito com o ego, o reconforta, protege e acolhe, tal como uma Rainha deve fazer com seu Rei!

Talvez seja por isso que o xadrez fascine tantas pessoas no mundo! Sem notar, todos somos enxadristas. Cada um de nós joga “a Partida” neste Grande Tabuleiro que é a Vida: uma Partida que todos buscam vencer!


*Um texto meu de 2002, ainda inédito aqui.

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terça-feira, 11 de julho de 2017

Amizade de cores opostas


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“Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. (…) Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade!” Nietzsche (A Gaia Ciência)

Entre os homens, a inimizade é mais antiga que a amizade, como podemos facilmente aferir nas primeiras páginas do Gênesis: a famosa história de Caim e Abel. Será a natureza humana? Essa é a maior razão para venerarmos ainda mais a amizade entre as pessoas!

Houve, uma vez, dois amigos que  se conheceram numa partida de xadrez.

Suas idades eram discrepantes, uma geração de diferença, mas o grande entusiamo pelo jogo, a salutar rivalidade no tabuleiro, as longas conversas sobre os melhores jogadores – um deles (o que jogava de forma mais agressiva) gostava do Karpov, o outro (um jogador mais posicional) venerava o Kasparov – foram transformando os dois em grandes amigos.

Quem nunca escutou dois enxadristas conversando sobre o jogo, não pode imaginar quanto assunto pode aparecer. Eles discutem se é melhor ter dois bispos ou dois cavalos, se devem mover o peão da dama uma ou duas casas na Defesa Siciliana, lembram antigas partidas, lamentam velhos erros, vangloriam-se de sacrifícios de peças e mates mirabolantes.

Aqueles dois amigos não fugiam à regra. Incontáveis vezes um chegava na casa do outro, começavam jogando umas partidas rápidas, de apenas cinco minutos para cada um no relógio. Depois, passavam ao assunto do dia, uma nova abertura que um queria aprender, o outro queria mostrar a última partida do Ivanchuck que vira no jornal de domingo.

Mesmo em esferas mais mundanas, como as namoradas, as metáforas de xadrez estavam todas lá: “tentei um avanço pelo flanco, mas ela defendeu”; “estava há dois lances do mate, mas os pais dela chegaram”.

Os anos, porém, vão colocando mais peças no tabuleiro da vida, as variantes vão-se complicando. Para um deles, chegou o tempo da universidade; o outro já estava trabalhando. A vida foi ficando mais complexa. As conversas mais escassas, o tempo mais curto.

Numa das últimas vezes em que se viram, começaram uma partida, mas não terminaram. Era uma posição de peão da dama. Ficaram de continuar depois. Falaram de alguns conhecidos, de marcar com a turma do xadrez. Desconcertados, ambos procuraram metáforas bem humoradas para aliviar o clima, mas todas pareciam esgotadas, peões que avançaram e não podiam voltar atrás.

Alguém que os observasse naquele momento doloroso teria a impressão de que amizade e inimizade são como as cores do tabuleiro: opostas, distintas, mas sempre lado a lado.

Se soubessem que nunca mais jogariam, que não mais se falariam, talvez tivessem se esforçado mais. Talvez tivessem jogado aquela derradeira partida até o final. Sem saber que era o fim, encerraram a amizade como se encerrassem uma partida, civilizadamente, com um frio aperto de mão.


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