domingo, 12 de maio de 2019

O supersticioso morreu de velho*


Josué era um ávido leitor de tudo quanto era conteúdo de xadrez. Gostava bastante de textos que combinassem análises de partidas com uma boa dose de lirismo.  Passaram por suas mãos e vistas livros como El Ajedrez de Torneo (que infelizmente precisou se esforçar para ler em espanhol pela ausência de uma tradução nacional), seu autor, David Bronstein, não se limitava a lançar variantes secas, mas sempre trazia algo além, em prosa. O livro Piense como un gran maestro, do Kotov, também cumpria bem esse papel, embora ali não se analisassem partidas completas.
A alegria de Josué foi grande quando ele encontrou num sebo o livro de crônicas de Hélder Câmara, intitulado Diagonais: crônicas de xadrez. Se havia um estilo mais agradável aos gostos de Josué era aquele usado nos textos daquele livro. O autor era um mestre com os trebelhos e com as palavras! Entendia tanto de tática e estratégia, quanto de nuances da vida humana. Ao correr os olhos sobre o índice, Josué logo percebeu que o mestre Câmara também tinha uma predileção pelo grande “Mago de Riga”, o ex-campeão do mundo Mikhail Tal.
Ao ler uma das crônicas, Josué foi literalmente às lágrimas, enlevado pelo simbolismo da partida, a derradeira do Mago, jogada poucos dias antes de sua morte. O que mais impressionou Josué foi o fato de que o último lance da última partida de Tal consistisse em retornar com o rei até sua casa inicial – rei um do rei – levando o adversário a abandonar a luta. “Homem, és pó e ao pó voltarás” escreveu Câmara ao lembrar o texto bíblico, e arrematou: “assim (…), Tal despedia-se da vida do xadrez (e …) do xadrez da vida”.
Profundamente impressionado, Josué passou algumas semanas sem tocar o tabuleiro, apenas lia e releia a crônica, fantasiando se Tal havia feito cada uma daquelas jogadas de sua partida final sabendo que ali acabaria tudo.
A deusa Caíssa gostava de fazer tratos com alguns homens, Josué sabia, e não duvidava que talvez até houvesse um céu só para enxadristas, onde deveria estar Bobby Fischer, que fora levado após somente 64 anos de vida, um ano completo para cada casa do tabuleiro. E, agora, Tal selar a sua vida com o enigmático retorno do monarca até a casa um do rei… Era muito estranho.
Com o tempo, porém, ele foi retomando sua rotina normal, a crônica e a partida continuavam com ele, mas tornara-se mais fácil pensar que tais mistérios não passavam de falsas relações que a fértil imaginação humana quer impor ao Acaso.
Josué já não era tão jovem, desde que se aposentara gostava de participar de todos os torneios que aconteciam em sua cidade, talvez como forma de compensar os anos que passara afastado em decorrência de afazeres profissionais e familiares. Agora, sempre que possível, estava em frente a um tabuleiro.
Meses após ler a crônica, momentaneamente esquecido dela, Josué jogava com as peças pretas uma partida de torneio e tinha diante de si uma posição vencedora, com xeque-mate a descoberto. Bastaria fazer um lance: rei um do rei – retornar seu rei para a casa inicial. O adversário estava pálido, certamente rezando para que Josué não visse o mate, mas era uma jogada muito fácil. Além do mais, qualquer outra jogada daria chance às brancas de igualar a partida. Com um sorriso retido a muito custo, Josué esticou a mão até seu rei e o segurou entre o polegar e o indicador, mas algo o interrompeu.
O adversário pensou que fora a Providência, porém era uma terrível dúvida que acometera Josué. E se ele também tivesse o mesmo destino de Tal? E se a quantidade de jogadas de sua vida estivesse determinada para se completar naquele dia, após o retorno do rei? “Homem és pó…”, em vez de lances, os versículos rondavam sua mente.
Não, não havia qualquer lógica. Que bobagem. E voltou a imprimir força à mão estática que segurava o rei. Lembrou-se, então, que seu adversário se chamava Miguel, e parou novamente.
Tal era Miguel também!
Estava com 64 anos, ainda queria tanto viver e jogar… Se houvesse um céu para enxadristas, certamente ainda não estava pronto para lá. Moveu o rei, já que havia tocado aquela peça, porém para a casa dois do bispo – xeque, mas não mate, permitindo alívio do monarca inimigo. As brancas acabaram vencendo, para alegria de Miguel, embora fosse Josué quem parecesse aliviado.
Ainda hoje, ele joga torneios pela cidade. A idade avança aos poucos, como peões no tabuleiro. Quem observar de perto suas partidas perceberá rapidamente seu segredo: Josué jamais retorna com seu rei até a casa inicial! Nem mesmo para dar (ou escapar de um) xeque-mate.
*****
Desafio aos leitores: que tal compor uma posição plausível – uma posição problema – para o arremate possível na partida entre Miguel e Josué, conforme narrado no texto? Os requisitos estão todos lá. Envie o diagrama ou o código FEN para rewbenio@lancesqi.com.br, publicarei uma coletânea dos problemas recebidos, devidamente identificados com seus 

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Conheça Rafael Leite do Canal Xadrez Brasil

"Faço o que faço por paixão, não espero nada em troca"


Sorriso de quem faz o que gosta, e faz muito bem!
"Fala galerinha do xadrez!" Quem ainda não conhece essa saudação inicial está perdendo tempo! Assim são iniciados os vídeos do canal Brasil Xadrez no Youtube, sempre na voz de seu criador Rafael leite.

Rafael conseguiu criar o maior canal de xadrez do Brasil em número de inscritos! Alguns podem achar que é uma tarefa fácil, mas não é! Para se ter uma ideia, o canal de Rafael tem hoje mais inscritos que o canal do GM Daniel King, o Power Play, sendo que a audiência de King se estende a todo o mundo, pois seu conteúdo é em língua inglesa, enquanto que Rafael trabalha numa base de usuários bem menor, que são os falantes da língua portuguesa.

Isso é só um dos fatores que atestam a qualidade do trabalho dele! São vídeos que usam o formato de análise de partidas completas, num ritmo que algumas vezes lembra uma animada narração de futebol e, é claro, ensinam dicas valiosas das diferentes fases do jogo para as milhares de pessoas que acompanham o canal.


Rafael gentilmente reservou um tempo para responder algumas questões que nos ajudarão a entender um pouco de suas ideias e motivações, tanto no xadrez quanto na vida!

1) Rafael, fale um pouco sobre você, em especial aquilo que não tem a ver com xadrez.
Sou um cara comum. Casado, pai de uma filha, trabalhador. Sou caseiro, tranquilo, amo a vida e as pessoas. Meu sonho é construirmos um mundo bem melhor. Avante!

2) Você conhecia o blog Lances Quase Inocentes (LQI)?
Não conhecia, fiquei admirado com a qualidade do conteúdo do blog, já estou acompanhando.

3) Como você aprendeu xadrez e como esse jogo se tornou importante na sua vida?
Aprendi aos 5 anos de idade com meu pai e meu avô materno. Jogava com meu irmão e meu pai em casa. No entanto, acredito que eles não gostavam do tanto jogo quanto eu. Sempre pedia para jogar, mas acabávamos fazendo outras coisas. Na época não havia internet (nasci em 1982), então simplesmente coloquei essa paixão "em espera". Somente aos 14 anos, mudei de colégio e na nova instituição havia aulas de xadrez. Por acaso, um amigo me pediu para entrar lá certo dia, pois ele tinha esquecido a mochila, entrei na sala de xadrez com ele para esperá-lo e foi assim que redescobri essa paixão. Me tornei aluno, em poucos meses já vencia o professor, e saí jogando torneios, Paulista, Brasileiro, Interclubes pela AABB, e passei a ser um frequentador ativo do CXSP (Clube de Xadrez de São Paulo). Por 3 anos, estudei em torno de 6 horas por dia. Depois veio cursinho, faculdade, namoros, acabei deixando mais uma vez o xadrez de lado. De 1 ano pra cá, a partir de 2018, resolvi tirar a paixão da gaveta e criei o canal Xadrez Brasil no YouTube, para extravasar tudo o que ficou acumulado uma vida toda. Deu certo, em menos de 5 meses eu me tornei o maior canal de Xadrez do Brasil, com mais de 50.000 inscritos. Acredito que aquilo que se faz com verdade e paixão, é percebido pelo público.

4) Você compete ou competiu regularmente em torneios ao vivo, ou prefere eventos e partidas online?
Entre 1997 e 1999 competi regularmente em torneios ao vivo por todo o Brasil, viajava praticamente todo mês. Há 20 anos que não participo de um torneio, mas neste ano (2019), vou jogar o Campeonato Brasileiro Amador em Junho. Não vejo a hora, é uma experiência incrível jogar torneios.

5) Gerar conteúdo sobre xadrez é uma tarefa árdua, pois a audiência é bastante crítica e seletiva e o retorno ao tempo dedicado costuma ser baixo. Qual tua motivação para superar essas dificuldades e ter um hoje um canal consolidado de vídeos de xadrez?
Faço o que faço por paixão, não espero nada em troca. Gosto de expor minhas análises, o contexto histórico, mostrar a evolução do jogo ao longo dos séculos, ajudar a desvendar os incríveis mistérios desta arte-ciência que é o xadrez. Gosto de explorar este mundo de beleza do xadrez, que quanto mais acompanhamos, mais enxergamos a sua grandiosidade e infinitude.

6) Você é um consumidor de livros de xadrez, ou sua geração já usa aplicativos e vídeos como principal forma de aprender sobre o jogo?
Aprendi sem internet, era debruçado em livros e tabuleiro mesmo. Sou a favor de estudar com peças e papel. Mas entendo que o mundo mudou. Hoje em dia, tudo acontece de forma mais dinâmica. Ficava sugerindo a meus amigos que queriam aprender xadrez a comprarem livros, tabuleiro e estudar. Todo mundo acha legal o plano mas acaba não fazendo, não dá tempo, não é prático. Para resolver isso, estou criando uma Academia Online de Xadrez, a Academia Xadrez Brasil, que será inaugurada em maio de 2019. Com aulas interativas online, a ideia é passar este conhecimento que existe em livros, de forma dinâmica, prática, simples e interativa. O aluno poderá aprender onde estiver, no metrô, em casa, no sítio, na praia etc, sem precisar de mais nada além de um celular, tablet ou computador.

https://www.youtube.com/user/rafa18sp/
Visão geral do canal Xadrez Brasil
7) Por que um canal no YouTube e não um blog?
Minha expressão flui mais facilmente em vídeos. Não tenho muita facilidade de extravasar tudo o que sinto de outra forma. Em vídeo, consigo ser espontâneo, mostro meus acertos, meus erros, minhas emoções, tudo de forma natural, sem passar borracha. Mas tenho vontade de ter um blog também, para uma outra forma de expressão, mais documental. O que me falta hoje para isso é tempo.

8) Pode deixar uma mensagem final para os seguidores do teu canal e os leitores do LQI?
Xadrez é encantador. Um mundo de beleza onde a arte imita a vida. Mas como tudo na vida, precisa de equilíbrio. Saiba caminhar.

Rafael, o LQI agradece pelo tempo que dedicou para responder às perguntas e te parabeniza pelo primoroso trabalho. Abraço! 

LancesQI

O blog foi mudado para: www.LancesQI.com.br