quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Xadrez: uma beleza até de ponta cabeça!*

Num dia comum, como qualquer outro, vejo um problema de xadrez no Twitter, penso por alguns instantes e penso que resolvi. A beleza da combinação chega a arrancar-me um sorriso, e apressei-me para enviar para outros amigos do jogo pelas redes sociais.
Brancas jogam e dão mate em 3 jogadas.
Enviei assim, sem as coordenadas do tabuleiro e logo apareceram comentários com mais de uma solução: uma supondo que os peões pretos se movem para cima no tabuleiro apresentado; outra supondo que os peões pretos se movem para baixo no tabuleiro.

Seria possível o xadrez ser tão mágico assim? Não seria engano de alguns colegas?

A posição original, com as coordenadas corretas, deveria ser esta:



E a solução para o problema original é: 1.Rf3! g1=D (se, por exemplo, 1. … g1=C+ 2.Rf7#) 2.Cf2+ D×f2+ 3.R×f2#. As promoções do peão em g1 a bispo ou torre também levam a desfechos similares.

A posição que foi interpretada por outros é a seguinte (girando o tabuleiro 180º, sem mudar as coordenadas):



E o que surpreendeu a todos é que realmente, apesar da radical mudança na posição, o problema de mate em 3 é mantido! A solução é muito elegante: 1.Bc6! b×c6 (única) 2.Rc8 c5 3.Cc7#.

O fato não passou despercebido, e muitos interpretaram a coincidência como prova do manancial infinito de belezas do xadrez.

Seria possível criar outros problemas "irmãos" desses acima variando a colocação do bispo (entre b7 e e4 no primeiro caso; entre g2 e d5 no segundo caso), mas outras variações não seriam tão felizes. Por exemplo, mudando-se o rei para e1 no primeiro caso, o problema passa a mate em 4, mas no segundo caso, a mudança do rei para e8 ainda permite mate em 3 (vale a pena verificar).

Naquele dia foram muitos os devotos de Caíssa que dormiram encantados, alguns que estavam há meses sem olhar seus livros de problemas ousaram dar uma olhada, outros jogaram partidas para extravasar a adrenalina enxadrística. Eu fiquei pensando neste texto, tinha que escrever e publicar! Quem sabe não acontece de alguém ler, de se encantar também, e de o mundo ganhar mais um enxadrista?


*Uma versão deste texto apareceu inicialmente no blog parceiro Reino de Caíssa.

sábado, 22 de dezembro de 2018

Xadrez: Jogo-Arte-Ciência-Filosofia

Não sei dizer o que eu mais aprecio no xadrez, pois as qualidades do jogo-arte-ciência que mais saltam à minha vista vão mudando conforme os anos passam.
A criança se interessou pelas peças tão diferentes, belas e cheias de personalidade (xadrez arte). O adolescente atraiu-se pela profundidade científica, pelo alcance da estratégia, pela infalibilidade da tática (xadrez ciência). Ao jovem adulto interessava o caráter competitivo, vencer partidas, ganhar pontos... (xadrez jogo).
E o adulto de hoje? Bem, em diversas ocasiões sou brindado com uma nova faceta dessa maravilhosa criação humana que é o xadrez!
Um dia desses, tentando levar o xadrez a mais pessoas, mostrei o diagrama abaixo para alguns amigos que sabem as regras do jogo, mas não o praticam com frequência.


Pedi a eles que tentassem identificar a ideia que leva as brancas à vitória em somente duas jogadas.
Depois de algumas tentativas que não alcançaram o xeque-mate, mostrei a eles a ideia do sacrifício da dama: 1. D×h7+!
Todos ficaram surpresos e deram a mesma resposta: "eu jamais pensaria em sacrificar minha dama, sou um cavalheiro à moda antiga".
Talvez fosse brincadeira, mas isso me mostrou algo: tomar um pedaço de madeira que chamam de rainha por uma pessoa do sexo feminino não ajuda em nada a vencer uma partida. Peças de xadrez são apenas peças, não precisam sequer ter uma representação física!
Meus amigos não descobriram o xeque-mate por, inconscientemente, transformarem em realidade algo que só existe na fantasia (a peça de xadrez recebe uma denominação feminina, mas é somente uma peça de xadrez).
Assim, veio o ensinamento:
no xadrez, como na vida, transformar o imaginário em algo real só nos distanciam do nosso real objetivo!
Bem, é isso que o xadrez significa para mim hoje, uma fonte imprevisível de profundos ensinamentos (xadrez filosofia)!

sábado, 1 de dezembro de 2018

Aprendendo com os campeões

A cada campeonato mundial, Isaías sente renovar-se um pouco a velha chama enxadrística que por tantos anos esteve presente em sua vida, aquecendo sonhos e planos, apesar de sua paixão pelo jogo nem sempre ser correspondida.

O mundial deste ano até lembrava nostalgicamente os embates lendários entre Kasparov e Karpov (K × K), não somente porque voltavam a se enfrentar os dois melhores enxadristas do planeta, mas também por causa das iniciais: Ca × Ca.

Isaías seguiu todas as partidas pela internet, em especial a 12ª, que poderia definir o confronto. O melhor era acompanhar as análises dos grandes mestres online, pois sempre aparecia alguma ideia nova, alguma dica que, embora ele quase não jogasse mais com tanta frequência, poderia ser útil algum dia.

Num desses vídeos, o grande mestre Yasser Seirawan comentou algo sobre uma armadilha de abertura na 12ª partida (uma Siciliana) na qual as pretas poderiam acabar num interessante xeque-mate "afogado" caso jogassem sem bastante cuidado.


Impressionante como tem coisas ocultas no tabuleiro, mesmo nas primeiras jogadas! Claro que o Campeão Mundial jamais cairia naquilo, mas Isaías pensou que algum jogador menos talentoso que Carlsen poderia muito bem se tornar uma vítima naquela situação. Só havia uma dificuldade: Isaías não jogava peão do rei e seria improvável enfrentar aquela variante da Defesa Siciliana.

Aquela 12ª partida acabou empatada, após uma estranha proposta de igualdade feita pelo campeão numa posição vantajosa. No desempate, em partidas rápidas, Magnus Carlsen se impôs e manteve seu título.

Embalado pelas partidas do mundial, assim como dois anos antes, Isaías sentiu novamente vontade de jogar. Correu para o clube, mas lembrava fortemente de não tomar as lições aprendidas durante o campeonato mundial muito ao pé da letra como fizera da última vez.

Nos clubes sempre tem alguém pronto para um par de partidas rápidas, e Isaías não teve dificuldades em encontrar adversários. Foi difícil desenferrujar, mas após algumas derrotas iniciais ele conseguiu alguns pontinhos.

Já perto do fechamento do clube, Isaías moveu seu peão da dama duas casas para iniciar aquela que seria última partida da noite. Seu adversário respondeu com uma Defesa Benoni Antiga, e uma posição parecida com aquela da 12ª do mundial apareceu:


Posição após 4. ... Ce7

Como já era tarde da noite, Isaías pensou "Por que não?" e seguiu jogando 5.Cb5 a6 6.Da4 Bd7. Com uma estranha satisfação, Isaías concluiu que, definitivamente, seu adversário não vira o vídeo do Seirawan… Jogou o xeque-mate "afogado" ensinado dias antes: 7.C×d6#.


Posição final, após 7.C×d6#
É sempre bom usar o que se aprende. Dá uma sensação de dar um passo a mais na vida, mesmo que esse passo seja bem pequeno, menor até que o passo de um peão no tabuleiro. Para Isaías, porém, aquele pequeno triunfo serviu para manter acesa a velha chama durante a longa espera que virá, de dois anos, até o próximo confronto pelo título mundial.

LancesQI

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