domingo, 4 de dezembro de 2016

O jogador que só queria perder


- Vocês viram, David foi campeão mundial!?
- Que coisa, não é!? E pensar que todos aqui ganhamos dele!

Alguns anos antes...

Naquele tempo, as crianças ainda se juntavam para brincar, havia as brincadeiras de temporada. Primeiro eram os jogos de correr e pegar, depois de bola, até que alguém ganhava um jogo novo de tabuleiro, como WAR ou Banco Imobiliário. A meninada, principalmente os meninos, ficava numa rivalidade acirrada, verdadeiras rixas, que, às vezes, chegava perto da disputa física.

Foi o Luizinho quem trouxe a grande novidade daquele ano, presente de aniversário: uma caixa de madeira toda cheia de quadros claros e escuros, dentro dela uma peças miúdas de madeira, também claras e escuras. Formaram uma roda para ver aquilo. Como é esse jogo? Essa peça anda para trás? Como que come? Por sorte havia no fundo da caixa uma papeleta com as regras.

O que os meninos não sabiam é que pela primeira vez tinham contato com um jogo perigoso, que fazia cada um encarar o que trazia dentro de si, seus medos, suas vontades, seus anseios, sua visão de mundo (e naquela tenra idade lá se tem noção que temos uma visão de mundo!?). Eles partiram para os confrontos, sempre dois jogando e uma dezena assistindo, curiosos e ansiosos pela vez de tomarem o canto de quem perdeu. Cada um jogava com muita vontade de ganhar, pois quem perdia ia para o final da fila e esperava a tarde inteira até ter outra chance.

Na escola, alguns descobriram que havia livros sobre aquele jogo, com táticas, jogadas estudadas e repetidas muitas vezes, com desfecho já conhecido. Era como abrir um baú cheio de ouro, e logo perceberam que conhecimento era poder e precisava ser protegido.

Aquilo trouxe uma grande discrepância de desempenho, e aconteceu a natural separação entre os que viam algum sentido em empurrar aquelas peças e os demais que já perdiam o interesse, pois não suportavam as derrotas em série, nem tinham vontade de aprender mais; era só um jogo, não é?

Permaneceu, então, uma pequena confraria, com alguns meninos de nível equilibrado, exceto David, o que mais perdia. Apesar de demonstrar criatividade e bom raciocínio, ele não era páreo para os colegas que já tinham lido os manuais de aberturas, sabiam notação e resolviam problemas do tipo ‘Brancas jogam e ganham’. Perder tanto não era um desmérito em si, de certo modo até demonstrava como o jogo era valioso para ele.

Um dia, Miguel, o maioral daquele grupo, deu um xeque-mate elegante em David, um daqueles que aprendera nos manuais. Não teria sido nada demais, se não fosse o comentário do vencedor:

- Desista deste jogo, David, você não serve nem para perder de todos.

Os outros riram, e David saiu cabisbaixo. Naquele momento, ele percebeu como o jogo era capaz de dilacerar o ego de alguém.

David passou os meses seguintes afastado do tabuleiro, mas quando menos esperava estava pensando no movimento das peças, nas armadilhas em que tinha caído, mas que agora percebia como deveria fazer para escapar. Quando voltava a si, repelia fortemente aquelas ideias, o jogo não era para ele, a prática havia demonstrado.

‘Você não serve nem para perder para todos’. Essa frase martelava David todo dia. Que tolice! Claro que, se quisesse, poderia sentar e jogar com qualquer pessoa e perder, era apenas questão de iniciar a partida e fazer jogadas ruins. Mas aquilo ficou tão marcado para ele que o assunto foi ficando sério, e ele foi descobrindo algumas dificuldades práticas para refutar a “profecia” do amigo. Para perder de todos, era preciso primeiro conseguir jogar com todos.

David, então, já havia descoberto os livros, tinha lido alguns. Mas ficou mesmo maravilhado quando, ao passar numa banca de jornais, viu ali uma revista estrangeira que trazia na capa dois homens de terno, olhar sério, jogando uma partida. Cada um tinha a bandeira de seu país ao seu lado, além de uma caixa de madeira onde parecia haver dois mostradores de despertador. Pediu ao dono da banca para olhar melhor, passou as páginas e viu muitas partidas com explicações, fotos de jogadores famosos, campeões do mundo. Afinal, aquilo não era só uma brincadeira de meninos.

Ficou ainda mais pensativo, como conseguiria provar que seu antigo carrasco estava errado? Ele poderia sim servir ao menos para perder de todo mundo! Mas como ele faria para sentar no tabuleiro com o campeão mundial?

Um estalo: precisaria aprender a jogar muito bem para poder enfrentar, e perder para, os grandes jogadores do mundo. Desta forma, conseguiria provar que seu amigo era um grande idiota.

Assim, começou a vida de David como jogador profissional. Ainda menino passou a fazer o mínimo na escola e a devotar seu tempo quase inteiramente ao jogo. Tomava parte nos torneios, nos quais, apesar da notória evolução técnica e conhecimento, sempre dava um jeito de perder o primeiro confronto contra qualquer que fosse o adversário. Perdia rápido, muitas vezes vergonhosamente para alguém daquele nível.

Por causa desta singular estratégia, demorou um pouco mais para acumular os títulos: campeão escolar, campeão estadual juvenil, campeão nacional juvenil, campeão nacional adulto…

David tinha um estilo criativo, por vezes excêntrico, que usava como “explicação” para suas derrotas inciais contra um novo adversário. No fundo, nunca deixara de ser aquele menino curioso e maravilhado ante as possibilidades do jogo, ainda profundamente magoado com a ofensa passada. Fizera aquilo tudo para provar que servia para alguma coisa, mas, em sua cabeça, ainda não conseguira.

O campeão mundial, Mikhail (coincidentemente Miguel em sua língua), não participava de torneios comuns, apenas disputas do título. Aguardava que os melhores do mundo se digladiassem pelo direito de disputar com ele a distinção de ser o melhor do planeta. Mas ele observava com interesse a ascensão daquele estranho jogador que despontava no cenário mundial. A forma que jogava não lhe parecia digna, era por demais instável, jogadas ridículas em uma partida para depois ser brilhante nas outras… aquilo não fazia o menor sentido. Começou a desejar que ele fosse seu desafiante, pois queria ensinar-lhe uma lição, para que jamais sentasse novamente perante um tabuleiro em sua vida!

Não se sabe se a “torcida” do campeão teve efeito, mas a teimosia de David fez com que ele superasse os demais candidatos em duríssimos torneios, até que somente ele restou. Apenas ele, dentre todos os jogadores do Mundo, poderia desafiar o campeão mundial.

Os jornais começaram a noticiar aquele confronto tão inusitado, Mikhail era claro favorito, afinal reinava por muitos anos e se poupava somente para aquele momento. O que ninguém sabia era que David estava a uma partida de realizar o que tanto sonhava.

Seriam vinte e quatro partidas, o primeiro a vencer seis delas seria o campeão, empates não contavam. Em caso de mesma pontuação ao final do confronto, o título permanecia com Mikhail. As regras pouco importavam para David, para ele bastava uma partida. Ele não fez tudo aquilo para ser campeão, muito pelo contrário. Estar ali naquela disputa era apenas uma estranha condição para seu real objetivo.

Chegou o grande dia, os jogadores se sentaram frente a frente, apertaram as mãos, Mikhail fitou o adversário com profundo desprezo, não era digno de estar ali a sua frente, mas, já que estava, deveria sentir a força de seu jogo.

David faria a primeira jogada e estava calmo, não ligou para aquele olhar, pensava em terminar aquilo rápido. Começou a partida com as duas piores jogadas possíveis de se fazer uma depois da outra, xeque-mate em somente duas jogadas do adversário. Mikhail, atônito, sequer sorriu pela vitória. Na verdade, ficou irritadíssimo ao perceber o semblante de dever cumprido que o derrotado apresentava.

David já não pensava no jogo, era uma página virada, estava assinando a súmula e planejava em instantes declarar perante todos os presentes, inclusive ao árbitro da competição, que renunciaria ao duelo. Não percebeu que esse aparente desprezo aumentou a ira do campeão que se levantou, foi até perto dele e falou próximo ao seu ouvido:

- Você é uma vergonha para este jogo e para si mesmo, só serve para isto, perder!

Mikhail não sabia, mas acabava de fazer a pior jogada de sua vida.


8 comentários:

Anônimo disse...

Beleza de crônica!
Abraços

Unknown disse...

O xadrez e a vida são assim: ajudam a levantar.
Parabéns pelo texto!

O começo do Fim disse...

Parece com minha história, serviu como terapia. Eu uma vez perdi para um matemático do bairro umas 4 partidas seguidas com xeque pastor, e ele falou algo assim pra mim, eu realmente cegava em defender-me... Hoje nenhum de meus amigos me vence, e não é isso q importa. Mas fica a lição...

Ozymandias_Realista disse...

De alguma forma, estou pensando nessa história desde de ontem, quando a li. Precisei voltar aqui para comentar isso.
E... 1. Cf3. Seu lance?

Rewbenio Frota disse...

Contra 1.Cf3... Bem tvz 1. ... c6

Ozymandias_Realista disse...

2. b3.

Mauricio Peixoto Seffrin disse...

Linda crônica. Fiquei esperando uma continuação.

Mauricio Peixoto Seffrin disse...

Linda crônica. Gostaria de uma continuação.

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