Muito antes da invenção das palavras escritas, ou mesmo das
primeiras letras, a raça humana vivia sob encanto da imagem ancestral de um
jogo, ou Jogo, indefinido e infinito, que ao longo dos séculos tem servido de
inspiração latente para outros tantos jogos e demais atividades humanas.
Conta-se que, numa época indeterminada, o Jogo se manifestou
a um sábio do oriente sob a forma de figuras que se moviam sobre uma superfície
dividida por linhas, à maneira de tropas que andam sobre campos minados. Tal
jogo, então, ganhou o mundo e recebeu diversos nomes: chaturanga, shatranj,
xatrange, xadrez.
Com a disseminação do xadrez, acirrou-se uma discussão entre
alguns iniciados em ciências místicas e artes mágicas que se consideravam
guardiões do Jogo. Diziam que era sempre necessário verificar se havia
suficientes elementos mágicos para, somente então, afirmar que se tratava
realmente de uma manifestação do Jogo. Muitos sustentavam que as figuras do
xadrez eram por demais simples e diretas, que eram mero espelhamento de
exércitos em batalha, coisa muito vulgar em toda a história das civilizações
humanas.
Certa feita, havia um sábio que visitava os guardiões, vindo
de uma distante região entre dois rios. Ele era considerado o maior dos
conhecedores das coisas simples e complexas sobre o jogo de xadrez. Ciente de
que sua presença ali, justamente quando se acalorava aquela nobre discussão,
não era mais que um sinal do destino. Pediu a palavra e começou a falar em tom
humilde, porém firme:
“Eminentes guardiões dos mistérios do Jogo, que conhecemos
apenas como desfocada imagem de espelho, mas cuja grandeza nos permite viver e
sonhar. Que estejamos sempre atentos para perceber as manifestações do Jogo!”
Em uníssono, os demais responderam com entusiasmo e
respeito: “O Jogo se manifesta aos atentos!”
“Venho aqui defender uma das mais importantes manifestações do
Jogo e assim ajudar a desfazer qualquer dúvida ou confusão que não nos permita
reconhecer esse fato. Vejam, sábios guardiões, são seis as figuras do xadrez,
assim como são seis as aflições humanas fundamentais; são quatro os cantos do
tabuleiro, o mesmo número dos elementos básicos da matéria; são duas as forças
que se opõem, a exemplo da luz e das trevas que lutam dia a dia no ocaso e na
aurora. Tão simples é esse jogo, em aparência, porém quanta complexidade ele
guarda: no princípio, há somente vinte movimentos possíveis, mas basta fazer
cinco jogadas e já as posições possíveis saltam aos milhões!
Em verdade, a
quantidade total de partidas distintas de xadrez é um número sem par até nas
estrelas do firmamento!”
Muitos dos presentes arregalaram os olhos com as informações
e com a paixão contida nas palavras do sábio. A questão, porém, ainda estava em
aberto. Havia alguns eminentes guardiões anciãos que ainda não estavam
convencidos. O decano pediu silêncio com sua frágil voz calejada pelos anos, e
os demais calaram imediatamente, como acometidos por uma mudez instantânea.
“Eminente visitante, são belos e verdadeiros teus
argumentos, e há aqui poucos dentre nós que já não tenham passado dias e noites
em claro, em alucinações de lances e combinações com as figuras do xadrez. Existe,
porém um ponto a esclarecer. O Jogo tem sido, desde a criação do mundo, uma
fonte de magia e inspiração. Mostra-nos, no teu amado xadrez, onde podemos
enxergar esse sinal indistinto de uma manifestação do Jogo.”
Os rostos voltaram-se novamente para o sábio da terra
distante, que em sua mão direita segurava uma figura. Quem estava mais longe
dele não percebeu qual das seis era aquela, mas a informação foi passada em
sussurros até os mais afastados: era um peão, a figura mais simples.
“Eis aqui o sinal.” Disse, erguendo o peão acima da cabeça.
“Este simples peão, um andarilho lento, desprovido de armas poderosas, que não
tem direito ao arrependimento nem à correção de um passo em falso, traz em si o
mágico poder de se transformar quando chega ao final do tabuleiro. Em meus
estudos, não pude precisar de quanto tempo remonta este lance mágico, mas os
pergaminhos mais antigos já falam desta propriedade. É necessário que o peão dê
seis passos, como para vencer cada uma das seis aflições fundamentais, até libertar-se
do jugo da incapacidade. Ganha um poder tão grande que pode trazer de volta à
batalha quem já foi eliminado ou duplicar uma figura de maior força que ainda
esteja no tabuleiro. Tal característica tem sido exemplo para os mais simples,
ao longo dos séculos, de que é possível vencer as dificuldades e conquistar a
posição que se deseja com perseverança e esforço.”
O decano levantou-se e foi até o sábio. Tomou de suas mãos o
peão e observou a peça por alguns instantes. Pediu para ver as demais figuras,
talvez tentando ver dentro de cada uma delas o peão que um dia elas foram.
Lembrou-se que somente o rei não poderia vir do peão, assim como o Jogo, que
não vinha de nada antes dele. Para o ancião, foi a última razão de que
necessitava.
“Vieste de longe, andaste bem mais que os seis passos do
peão, mas hoje apresentaste-te como um dos maiores guardiões do Jogo. A partir
de hoje, serás considerado um de nós, um guardião, e jamais voltará a pairar
qualquer dúvida de que o xadrez é uma inequívoca manifestação do Jogo.
O restante daquele dia foi dedicado a incontáveis partidas
de xadrez entre os guardiões e o visitante, todos queriam aproveitar a presença
do sábio para descobrir alguns novos segredos e gambitos.
O nome do sábio que defendeu tão bem o xadrez perdeu-se no
pó dos dias, e hoje a existência do Jogo é ignorada quase que completamente.
Ainda há, porém, histórias que correm sobre os guardiões, que são poucos e
dispersos. Falam que uma das poucas formas de reconhecê-los é durante uma
partida de xadrez, pois quando levam seus peões até o final do tabuleiro, antes
de fazer a promoção, dizem baixinho: “O Jogo se manifesta aos atentos.”
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(*) Uma primeira versão deste texto apareceu em primeira mão no blog parceiro Reino de Caíssa
Um comentário:
Excelente texto, informativo, mas ao mesmo tempo poético. Trás a lume, dos nossos dias corridos e tecnológico, a magia de um Jogo, o verdadeiro e único Jogo: XADREZ.
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