Passar a vida inteira jogando
xadrez era o mínimo que Josué poderia ter feito, aliás, concordava
inteiramente com a frase célebre que dizia que “a vida é muito
curta para o xadrez”, apesar de não saber ao certo quem havia dito
isso.
Jogava desde menino, mas foi
depois da aposentadoria, quando tinha pouco mais de sessenta anos de
idade, que ele passou a se dedicar inteiramente ao jogo com toda
energia que lhe restava. A família não protestava, um amor como
aquele não podia ser combatido e, de um modo ou de outro, havia
contagiado a todos os familiares.
Agora, aos noventa e oito anos,
sentado na mesa trinta e quatro do torneio estadual, tinha diante de
si um jovem adversário que atacava impetuosamente desde a primeira
jogada da partida. Era sua vez de jogar, olhava o rei fixamente e
contava as casas de escape. Começou a sentir uma leve tontura, em
seguida sufocou, sua mente sempre clara turvou-se, sentiu que era ele
quem estava em xeque. Seguiu-se uma grande luz e um longo silêncio.
Quando voltou a si, estava num
lugar no qual
nunca estivera, cheio de árvores emolduradas por um bonito céu azul
resplandecente. Por todos os lados havia
mesas onde pessoas jogavam xadrez. “Será que estou sonhando?”,
pensou.
Neste instante, percebeu uma
bela jovem que veio
ao seu encontro.
“Bem vindo, Josué! Sou
Caíssa, a deusa do xadrez, e este é o Paraíso dos Enxadristas.
Ehh, o Céu dos Enxadristas, se assim te parecer mais fácil de
entender”.
“Quer dizer que eu morri
durante aquela partida?”
“Sim Josué, você alcançou
uma das maiores honras concedidas aos enxadristas: morrer jogando.”
Josué ficou calado, olhou de
novo em volta, verificou suas mãos, seu corpo. Sentia-se ótimo,
novinho em folha. As mãos, já
não eram as de
alguém de noventa e oito anos.
“Josué, aqui no Paraíso,
cada um retoma à idade em que teve seu melhor desempenho no jogo
durante a vida. Por isso, você está com aparência de trinta e
poucos anos, quando jogou seu melhor xadrez.”
“Isso é muito bom!”
“Venha, vou te mostrar o
lugar.”
Realmente havia ali muitos
jovens, salvo algumas pessoas que se apaixonaram pelo jogo mais tarde
na vida e alcançaram o melhor desempenho pessoal já em idade mais
avançada.
“Quer dizer que eu vou
conhecer todos os campeões mundiais que já se foram?”
“Ah, sim! Estão quase todos
aqui.”
“Quase?”
“Bem, você sabe, no final de
sua vida, Steinitz costumava jogar muitas partidas com Deus.
Inclusive, morreu deixando uma partida inacabada. Então,
ouvindo as razões de seu celestial adversário, ele
preferiu ir para o Céu convencional, onde ainda deve estar jogando
com Deus até hoje!”
Josué ficou contente de não
ter sido Capablanca ou Fischer o convocado
por Deus para ir ao outro Céu, pois eram seus campeões preferidos.
Não demorou muito, ele viu um jovem loiro, com aparência de não
mais que trinta anos de idade, sentado sozinho em frente a uma mesa
onde havia
um tabuleiro arrumado com peças belíssimas. A deusa Caíssa
percebeu o olhar de Josué para o jovem e disse:
“Sim, é Fischer quem está
ali. Desde que chegou aqui pouco fala e não jogou sequer uma
partida.”
“Por que?”
“Fica sempre ali, quase sempre
sozinho. Só
Tal e Morphy conseguem arrancar algumas palavras dele, de vez em
quando. Ele ficou um pouco triste de ter vindo para cá aos sessenta
e quatro anos. Mas fazia parte do trato: em troca de ser o melhor ele
aceitou viver apenas um ano completo para cada casa do tabuleiro.
Agora ele está bem, mas aguarda por Spassky, seu grande amigo e
rival.”
“Vai ser um embate e tanto!
Cada um em sua melhor forma!”
Josué pensou um pouco sobre
aquilo. Sempre achou que, após a morte, os mistérios do jogo seriam
revelados, que o xadrez seria transparente para todos. Quando expôs
sua questão para a deusa, ela explicou que não haveria graça
nenhuma nisso, os enxadristas que sentiriam um tédio eterno se
soubessem tudo o que pode se passar num tabuleiro.
“Cada um tem a eternidade para
evoluir nos mistérios inexplorados deste jogo maravilhoso!”
O passeio continuou.
Naturalmente, não
havia somente as grandes estrelas do jogo. Pelo contrário, eram
milhares e milhares de simples aficionados, jogadores anônimos que
professaram a fé enxadrística sem duvidar, mesmo em face das mais
vergonhosas derrotas. Caíssa mostrou ao longe um homem que andava
atrás de outro, como a cobrar uma dívida.
“Olha, você não os
reconhece? É Kieseritzky que vive atrás de Anderssen, a pedir uma
revanche da famosa Partida Imortal. Mas
ainda não conseguiu.”
Em outro ponto, um rapaz num
terno impecável ensinava alguns truques para um grupo de mulheres;
sim, havia muitas delas no Céu dos Enxadristas!
“Ah, sim! Aquele é
Capablanca. Já não se interessa tanto em jogar, para ele é muito
fácil, mas fica aí, sempre às voltas com suas alunas.”
Mais além,
Josué viu uma grande bancada, com um trono central e um outro menor
ao seu lado. Certamente, o maior era o trono de Caíssa. Mas no trono
menor estava um homenzinho acanhado calvo e com óculos.
“Também
não o reconhece? Aquele é
David Bronstein, meu seguidor mais puro. Sua fé no jogo sempre me
encantou. Desde que chegou aqui, elegi-o para estar ao meu lado. Fica
sempre lá, estudando posições do peão do rei. Muitos outros vão
conversar com ele. É bastante popular!”
“E quanto a Botvinnik, seu
maior rival em vida?”
“Respeitam-se muito, mas não
têm contato. Bem, estão há muito pouco tempo aqui
comigo, com o tempo serão grandes amigos. Tenho
certeza! Veja só o caso
de La Bourdonnais e McDonnell: passam quase todo o tempo juntos,
jogando e rindo bastante.”
Eram tantos grandes jogadores,
tantas novidades, tantas novas ideais que demorou para Josué se
dar conta que sua antiga
vida estava encerrada. Lembrou-se
da esposa, filhos, netos e bisnetos. Ficou subitamente triste, pois
morrera
longe deles. Como deusa que era, Caíssa leu seus pensamentos.
“Eles jogam xadrez, não é?”
“Sim, jogam. Claro que cada um
tem seu nível, mas até os bisnetinhos já movem as peças!”
“Então, não se preocupe. Um
dia estarão todos aqui com você!”
Sorriu ao pensar que fizera
muito bem em ensinar o jogo a todos da família. Caíssa despediu-se
e foi para perto de Bronstein. Josué continuou andando pelo vasto
paraíso até encontrar
um homem delicado que
estava acabando de tornear algumas magníficas peças. Estava
terminando um peão. Josué observou aquela cena tentando ficar bem
quieto. Quando o homem acabou o trabalho, olhou para o lado e viu
Josué.
“Amigo, quer jogar comigo?
Acabo de fazer este novo jogo de peças!”
“Será um prazer! Vai ser
minha primeira partida aqui!”
Arrumaram as peças num
tabuleiro que estava numa mesa próxima, o homem pediu para jogar com
as peças brancas. Antes de mover, porém, ergueu um peão e começou
o que acabaria por ser uma longa palestra:
“Sabia que os peões são a
alma do xadrez?”
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(*) Uma primeira versão deste texto apareceu em primeira mão no blog parceiro Reino de Caíssa
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